Taty
A guerra que virou rotina

Agora que as primeiras fotos de crianças mortas no Afeganistão aparecem na imprensa; agora que se fala na possibilidade de milhões de afegãos morrerem de fome; agora que os Estados Unidos bombardeiam por engano até a Cruz Vermelha; agora que todos admitem as dificuldades gigantescas da empreitada americana -bem, é curioso que tudo isso vá sendo recebido com certa indiferença.
A guerra vai virando rotina. As primeiras informações de desgraça real atingindo o Afeganistão parecem despertar esse misto de piedade, repulsa e conformismo que já conhecemos de tantas outras guerras.
Uma mulher em Cabul vê seus sete filhos e o marido serem atingidos por uma bomba enquanto tomavam o café da manhã. Ela diz: "O que devo fazer agora? Olhe a selvageria deles". Eis uma palavra -selvageria- que estamos acostumados a aplicar (com razão) aos fanáticos do Taleban. Aos ouvidos ocidentais, o termo surge algo deslocado ao ser pronunciado por alguém "do lado de lá"; e, no entanto, o que ela disse é verdade -a mais intensa, a mais chocante, a mais simples verdade.
Uma série de mecanismos perversos começa a se desencadear. A mulher não tem nome; seu rosto está coberto com um véu. A despeito da enormidade da tragédia, o seu relato é breve; não tem como ser amplificado pela mídia; a mulher não tem biografia -eis como se dá, enfim, o processo que acabará por torná-la apenas um "dano colateral".
Na mesma página do jornal, vejo duas fotos terríveis. Numa, diz a legenda, "afegão chora pelos filhos mortos durante bombardeio americano sobre área residencial de Cabul". A mão direita, coberta de pó, esconde a sua barba, e o rosto, contraído, vermelho, com as sobrancelhas juntas, tem para mim algo de brasileiro, de nordestino, de caipira. São os traços da infelicidade na pobreza -uma infelicidade que, de alguma forma cruel, termina "valendo menos".
Mas era um homem. Na outra foto, "mulheres esperam a preparação dos corpos de crianças mortas na ofensiva dos EUA à capital afegã", vemos um grupo de mulheres, das quais só duas têm o rosto descoberto; as burgas, impostas por uma fé extremista e desumana, tiram precisamente um pouco da humanidade dessas vítimas; a gesticulação, a veemência da dor pessoal como que se obscurece. O véu cai também sobre nossos olhos.
Espero não ser acusado de fazer demagogia; é verdade que não procurei usar um tom muito eloquente ao falar das vítimas do atentado em Nova York. Mas a eloquência, ali, estava em todas as fotos, em todos os discursos, principalmente nos de Bush. A tragédia é a mesma, mas nos dias que se seguiram à destruição do World Trade Center era impossível não expressar enormes preocupações quanto a qual seria a reação da maior potência militar do planeta.
Por isso mesmo, antes dos bombardeios foi mais sensível, na minha opinião, o clima de antiamericanismo em grande parte da classe média brasileira. Creio que não chegou a ser medido em toda a sua extensão. Dos internautas de esquerda até pessoas bastante simples, ouvi pouquíssimas opiniões favoráveis a um bombardeio americano. Mas agora não ouço tanta gente contrária ao bombardeio; não parece haver reações à altura do que acontece.
É verdade que Bush moderou o seu discurso, inicialmente pautado pela idéia de "bem contra o mal" etc. Mas há outros fatores. Se tudo, a partir do próprio atentado, parecia seguir um roteiro hollywoodiano, era de temer uma reação fulminante, no estilo de Rambo, um bombardeio atômico, que sei eu.
De alguma forma, o ritmo dos acontecimentos mudou. Os talebans resistem mais do que se pensava, os ataques americanos se sucedem "cientificamente", e todo o mundo islâmico está em compasso de espera: as manifestações de apoio a Bin Laden não se transformaram em insurreição popular.
A desgraça humana aparece em seus andrajos de sempre; suja, anônima, subnutrida, fatal. Ou melhor, "fatalizada": a mulher afegã não saberá nunca por que bombardeiam o seu país; e é uma questão de tempo para que os americanos, mais uma vez, percebam que não têm idéia do que estão fazendo por lá.
Por aqui, voltamos ao normal também. A crise argentina, a greve dos professores universitários, e até mesmo Tasso Jereissati, quem diria, vão atraindo o interesse da classe média. Que começa a planejar suas férias de verão. Longe de Nova York e de Miami, desta vez.
Há aqui um outro efeito curioso da crise internacional sobre muitos brasileiros. Volta-se a achar que o Brasil é o melhor lugar do mundo para viver. O processo se deu em três etapas. Na primeira etapa, quase todo mundo queria se mudar para os Estados Unidos; aquilo sim é que valia a pena. Quem tinha parentes por lá sentia um misto de orgulho e complexo de inferioridade. O complexo de inferioridade foi vingado quando as torres gêmeas vieram abaixo. O antiamericanismo, amainado, se transforma numa quieta alegria diante de nossa desimportância mundial.
E a guerra do Afeganistão, à medida mesma que seus horrores se revelam, vai-se tornando remota; o tom dos comentários segue mais ou menos a idéia de que "o mundo não tem jeito", ou, pelo menos, de que não é possível entrar num espírito de torcida a favor de ninguém. De fato, como apoiar um bombardeio sobre a população civil? Mas como ignorar que a resistência dos líderes talebans, longe de ser um ato de altivez, é ela própria uma loucura, impondo, sabe-se lá com que legitimidade popular, o suicídio furioso e prolongado de um país?
Marcelo Coelho