[por Ricardo Bonalume Neto]
Terca-feira, 14 de maio de 2002; um titulo de reportagem desta Folha: "Dez sao presos ao tentar ressuscitar menina".
Deve ter sido uma das historias mais tristes e ao mesmo tempo mais pateticas dos ultimos tempos. Seguem os fatos basicos:
"Dez membros da igreja evangelica Assembleia de Deus foram presos em flagrante anteontem a noite, no Cemiterio Municipal de Paulinia (126 km de SP), tentando ressuscitar a menina Nicole Aparecida Camilo Ramos, de um ano."
"Entre os presos estao o pastor Claudinei Batista de Paiva, 33, que liderou o ato, e os pais da crianca, Marcos Donizete Ramos, 35, e Evellin Aparecida Camilo Ramos, 23. Todos foram liberados ontem."
"Nicole morreu no ultimo dia 8, atropelada pelo pai, que nao a viu. Segundo a policia, o pastor, os pais e mais 12 fieis invadiram o cemiterio, abriram o tumulo, retiraram o corpo e comecaram a rezar pela ressurreicao da garota."
Nao ha duvida de que se trata de uma impressionante demonstracao de fe religiosa. Achar que as rezas poderiam trazer a menina de volta a vida e algo irracional, so explicado por uma fe intensa.
Mas e altamente compreensivel. Imagine a dor de um pai que mata por acidente uma filha pequena. A fe religiosa acaba sendo irresistivel.
Quando a esquerdoide teologia da libertacao catolica ainda nao era moda, a esquerda costumava chamar a religiao de "opio do povo". Hoje ja nao e politicamente correto faze-lo, dada a profusao de freis e frades fas de Cuba e de Marx.
Mas a velha definicao acertava em cheio. Pense no opio nao como uma droga como a heroina ou a cocaina. O opio da analogia deve ser entendido no sentido de anestesia, de uma maneira de controlar a dor das pessoas, como fazem as drogas opiaceas. A religiao nao e a "droga" do povo, mas sim a sua "anestesia".
Os crimes cometidos em Paulinia foram violacao de sepultura, violacao de cadaver e danos ao patrimonio publico. Os reus eram todos primarios. Estou curioso para saber o que a Justica decidira. Se de um lado foram cometidos crimes, ha tambem um bocado de circunstancias que atenuam sua gravidade.
Nao acho que os envolvidos merecam ser castigados, mas algum tipo de recado deve ser dado ao fanatico pastor envolvido, pois o fanatismo religioso pode eventualmente ter outros alvos. Basta ver que em outras religioes ja surgiram suicidios coletivos, sacrificios humanos ou recrutamento de martires-bomba.
Ha um detalhe curioso nessa historia. Outro pastor da congregacao teria dito que o pastor Claudinei "usou o procedimento errado -a oracao deveria ter sido feita logo apos a morte".
Ou seja, a reza ainda poderia ter sido eficaz em trazer alguem de volta a vida, se tivesse ocorrido no momento certo, parece dizer o sujeito.
Quando se pensa que a maior parte da humanidade e religiosa e que bilhoes de pessoas rezam todos os dias, e no minimo desapontador que nao se conheca nenhum caso confirmado de gente que morreu ter ressuscitado.
Claro, existem as paradas cardiacas e o procedimento medico para fazer um coracao voltar a bombear sangue. Mas isso nao chega a ser considerado "morte", e dar um choque eletrico nao e bem uma oracao.
Quais seriam os criterios para a reza dar certo? Incluir um lider religioso -no caso, o pastor-no grupo? Incluir parentes proximos? Incluir o maior numero possivel de pessoas com fe?
Ha outras questoes. Quanto tempo se deveria rezar? Para quem seria feita a reza -deus (minuscula, por favor) diretamente, ou a santos e anjos? Quais palavras teriam poder magico e quais nao?
Em 1999 houve um estudo medico que alegou que pessoas rezando por pacientes tinham causado uma ligeira melhora neles. A imprensa adorou o caso. Mas pouco se falou depois nas multiplas contestacoes posteriores as varias falhas do estudo; ou a um outro mais recente, de 2001, que nao viu nenhum efeito da reza.
e ate estranho escrever isso em pleno seculo 21, mas la vai: caro leitor ou leitora, rezar nao so nao melhorou a saude de pacientes com doencas cardiacas, como tambem nao ressuscita ninguem.